PREFÁCIO
1
Neste livro encontra-se agindo um ser “subterrâneo” que
cava, perfura e corrói. Ver-se-á, desde que se tenha olhos para tal
trabalho nas profundezas, como avança lentamente, com
circunspecção e com uma suave inflexibilidade, sem que se
perceba em demasia a angústia que acompanha a privação
prolongada de ar e de luz; poder-se-ia até julgá-lo feliz por realizar
esse trabalho obscuro. Não parece que alguma fé o guie, que
alguma consolação o compense? Talvez queira ter para ele uma
longa obscuridade, coisas que lhe sejam próprias, coisas
incompreensíveis, secretas, enigmáticas, porque sabe o que terá
em troca: sua manhã só para ele, sua redenção, sua aurora?...
Certamente voltará: não lhe perguntem o que procura lá em baixo;
ele mesmo o dirá, esse Trofônio, esse ser de aparência
subterrânea, uma vez que de novo se tenha “tornado homem”.
Costuma-se esquecer inteiramente o silêncio quando se esteve
soterrado tanto tempo como ele, só tanto tempo como ele.
2
Com efeito, meus pacientes amigos, vou dizer-lhes o que
procurei lá embaixo, vou dizer-lhes neste prefácio tardio, que
poderia ter-se facilmente tornado um último adeus, uma oração
fúnebre, pois voltei — e re-emergi. Não pensem que pretendo
envolvê-los em semelhante empresa feliz ou mesmo somente em
semelhante solidão! De fato, quem percorre tais caminhos não
encontra ninguém: isso é peculiar aos “caminhos particulares”.
Ninguém vem em seu auxílio; ele próprio deve livrar-se,
completamente só, de todos os perigos, de todos os acasos, de
todas as maldades, de todas as tempestades que sobrevêm. De
fato, tem seu caminho que é próprio dele — e, em acréscimo, a
amargura, por vezes o desdém, que lhe causam esse “próprio
dele”; deve-se enumerar, entre esses elementos de amargura e de
desprezo, a incapacidade, por exemplo, em que se encontram seus
amigos de adivinhar onde ele está ou para onde vai, a ponto de
perguntarem às vezes: “Como? Será que isso é avançar? Será que
ainda tem — um caminho?”
— Foi então que empreendi uma coisa que não podia ser
para todos: desci para as profundezas; passei a perfurar o chão,
comecei a examinar e a minar uma velha confiança sobre a qual,
há alguns milhares de anos, nós, os filósofos, temos o costume de
construir, como sobre o terreno mais firme — e reconstruir
sempre, embora até hoje toda construção tenha ruído: comecei a
minar nossa confiança na moral. Mas será que não me
compreendem?
3
Foi sobre o bem e o mal que até hoje refletimos mais
pobremente: esse foi sempre um tema demasiado perigoso. A
consciência, a boa reputação, o inferno, e às vezes mesmo a
polícia, não permitiam nem permitem imparcialidade; é que,
perante a moral, como perante qualquer autoridade, não é
permitido refletir e, menos ainda, falar: nesse ponto se deve —
obedecer! Desde que o mundo existe, nunca uma autoridade quis
ser tomada por objeto de crítica; e chegar ao ponto de criticar a
moral, a moral enquanto problema, ter a moral por problemática:
como? Isso não foi — isso não é — imoral? — A moral, contudo,
não dispõe somente de toda espécie de meios de intimidação para
manter à distância as investigações e os instrumentos de tortura:
sua segurança se baseia ainda mais numa certa arte de sedução
que possui — ela sabe “entusiasmar”. Ela consegue muitas vezes
com um simples olhar paralisar a vontade crítica e até atraí-la
para seu lado, havendo casos em que a lança mesmo contra si
própria: de modo que, como o escorpião, crava o aguilhão em seu
próprio corpo. De fato, há muito tempo que a moral conhece toda
espécie de loucuras na arte de persuadir: ainda hoje, não há
orador que não se dirija a ela para lhe pedir ajuda (basta, por
exemplo, ouvir nossos anarquistas: como falam moralmente para
convencer! Chegam até a chamar-se a si próprios “os bons e os
justos”). É que a moral, desde sempre, desde que se fala e se
persuade sobre a terra, se afirmou como a maior mestra da
sedução — e no que diz respeito a nós, filósofos, como a
verdadeira Circe dos filósofos. Para que serve isso se, desde Platão,
todos os arquitetos filosóficos da Europa construíram em vão? Se
tudo ameaça ruir ou já se acha perdido nos escombros — tudo o
que eles consideravam leal e seriamente como aere perenius1? Ai!
Como é falsa a resposta que ainda se dá hoje a semelhante
pergunta: “Porque todos eles negligenciaram admitir a hipótese, o
exame dos fundamentos, uma crítica de toda a razão”. — Aí está a
nefasta resposta de Kant2 que realmente não nos jogou a nós,
filósofos, num terreno mais firme e menos enganador! (— e, dito
de passagem, não seria um pouco estranho exigir que um
instrumento se pusesse a criticar sua própria perfeição e sua
própria competência? Que o próprio intelecto “reconhecesse” seu
valor, sua força, seus limites? Não seria até um pouco absurdo? —
). A verdadeira resposta teria sido, ao contrário, que todos os
filósofos construíram seus edifícios sob a sedução da moral,
inclusive Kant — que a intenção deles só aparentemente se dirigia
à certeza, à “verdade”, mas na realidade se dirigia a majestosos
edifícios morais: para nos servirmos ainda uma vez da inocente
linguagem de Kant que considerava como sua tarefa e seu
trabalho, uma tarefa “menos brilhante, mas não sem mérito”,
“aplanar e consolidar o terreno onde seriam construídos esses
majestosos edifícios morais” (Crítica da razão pura, II).
Infelizmente, não conseguiu, bem pelo contrário — é preciso
confessá-lo hoje. Com intenções tão exaltadas, Kant era o digno
filho de seu século que pode ser chamado, mais que qualquer
outro, o século do entusiasmo: como Kant ainda o é, e isso é bom,
com relação ao aspecto mais precioso de seu século (por exemplo,
por esse bom sensualismo que introduziu em sua teoria do
conhecimento). Foi ainda mordido por essa tarântula moral, que
era Rousseau3, e também sentia pesar em sua alma o fanatismo
moral, do qual outro discípulo de Rousseau se sentia e se
proclamava seu executor, refiro-me a Robespierre4 que queria
fundar na terra o império da sabedoria, da justiça e da virtude
(Discurso de 7 de julho de 1794). Por outro lado, com um tal
fanatismo francês no coração, não era possível agir de modo
menos francês, mais profundo, mais sólido, mais alemão — se é
que em nossos dias a palavra “alemão” ainda é permitida nesse
sentido — como o fez Kant: para dar lugar a seu “império moral”,
viu-se obrigado a acrescentar um mundo indemonstrável, um
“para além” lógico — é por isso que teve necessidade de sua crítica
da razão pura! Em outras palavras: ele não teria tido necessidade
dela, se não houvesse uma coisa que lhe importasse mais que
tudo — tornar o “mundo moral” inatacável, melhor ainda,
inatingível para a razão — pois ele sentia com extrema violência a
vulnerabilidade de uma ordem moral perante a razão! Com relação
à natureza e à história, com relação à inata imoralidade da
natureza e da história, Kant, como todo bom alemão, desde a
origem, era um pessimista; acreditava na moral, não porque fosse
demonstrada pela natureza e pela história, mas apesar de ser
incessantemente contradita pela natureza e pela história. Para
compreender este “apesar de”, talvez se poderia recordar qualquer
coisa semelhante em Lutero, esse outro grande pessimista que,
com toda a intrepidez luterana, quis um dia torná-lo sensível a
seus amigos: “Se se pudesse compreender pela razão como o Deus
que mostra tanta cólera e maldade pode ser justo e bom, para que
serviria então a fé?” De fato, desde sempre, nada impressionou
mais profundamente a alma alemã, nada a “tentou” mais que esta
dedução, a mais perigosa de todas, uma dedução que constitui
para todo verdadeiro latino um pecado contra o espírito: credo
quia absurdum est5. Com ele, a lógica alemã entra pela primeira
vez na história do dogma cristão; mas ainda hoje, mil anos depois,
nós, alemães de hoje, alemães tardios sob todos os pontos de vista
— pressentimos algo da verdade, uma possibilidade de verdade,
por trás do célebre princípio fundamental da dialética, pelo qual
Hegel6 ajudou recentemente para a vitória do espírito alemão
sobre a Europa — “a contradição é o motor do mundo, todas as
coisas se contradizem a si próprias” —: porque somos, até em
lógica, pessimistas.
4
Mas os juízos lógicos não são os mais profundos e os mais
fundamentais, para os quais possa descer a coragem de nossa
suspeita: a confiança na razão, que é inseparável da validade
desses juízos, enquanto confiança é um fenômeno moral... Terá
talvez o pessimismo alemão que dar ainda um último passo?
Talvez deverá ainda uma vez confrontar seu credo e seu
absurdum? E se este livro, até na moral, até para além da
confiança na moral, é um livro pessimista — não será
precisamente nisso um livro alemão? De fato, ele representa
efetivamente uma contradição e não teme essa contradição:
denuncia-se aqui a confiança na moral — mas por quê? Por
moralidade! Ou como deveríamos chamar o que se passa neste
livro, o que se passa em nós? — pois, para nosso gosto
preferiríamos expressões mais modestas. Mas não há nenhuma
dúvida, também a nós se dirige um “tu deves”, também nós
obedecemos a uma lei severa acima de nós — e essa é a última
moral que ainda se torna inteligível para nós, a última moral que,
nós também, poderíamos ainda viver, se em alguma coisa somos
ainda homens de consciência, é precisamente nisso: pois, não
queremos voltar ao que consideramos como ultrapassado e
caduco, a alguma coisa que não consideramos como digno de fé,
qualquer que seja o nome que lhe for conferido: Deus, virtude,
justiça, amor ao próximo; não queremos estabelecer uma ponte
mentirosa para um ideal antigo; temos uma aversão profunda
contra tudo o que em nós quisesse reaproximar e se intrometer;
somos os inimigos de toda espécie de fé e de cristianismo atuais;
inimigos das meias medidas de tudo o que é romantismo e de tudo
o que é espírito patrioteiro; inimigos também do refinamento
artístico, da falta de consciência artística que gostaria de nos
persuadir a adorar aquilo em que já não cremos — pois somos
artistas; — inimigos, numa palavra, de todo feminismo europeu
(ou idealismo, se houver preferência para que eu o diga assim) que
eternamente “atrai para as alturas” e que, por isso mesmo,
eternamente “rebaixa”. Ora, como homens possuidores desta
consciência, cremos ainda remontar à retidão e à piedade alemãs
milenares, embora sejamos seus descendentes incertos e últimos,
nós, imoralistas e ateus de hoje, nos consideramos, em certo
sentido, como os herdeiros dessa retidão e dessa piedade, como os
executores de sua vontade interior, de uma vontade pessimista,
como já indiquei, que não teme em se negar a si mesma, porque
nega com alegria! Em nós se cumpre — no caso de desejarem uma
fórmula — a auto-ultrapassagem da moral.
5
— No final das contas, contudo: por que devemos proclamar
em alta voz e com tanto ardor o que somos, o que queremos e o
que não queremos? Consideremos isso mais friamente e mais
sabiamente, de mais longe e de mais alto, vamos dizê-lo como isso
pode ser dito entre nós, com voz tão baixa que o mundo inteiro
não o ouça, que o mundo inteiro não nos ouça! Antes de tudo,
vamos dizê-lo lentamente... Este prefácio chega tarde, mais não
muito tarde; que importam, realmente, cinco ou seis anos? Um tal
livro e um tal problema não têm pressa; e, além disso, somos
amigos do lento, eu bem como meu livro. Não foi em vão que fui
filólogo, e talvez ainda o seja. Filólogo quer dizer professor de
leitura lenta: acaba-se por escrever também lentamente. Agora
isso não só faz parte de meus hábitos, mas até meu gosto se
adaptou a isso — um gosto maldoso talvez? — Não escrever nada
que não deixe desesperada a espécie dos homens “apressados”. De
fato, a filologia é essa arte venerável que exige de seus
admiradores antes de tudo uma coisa: manter-se afastado, tomar
tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento — uma arte de
ourivesaria e um domínio de ourives aplicado à palavra, uma arte
que requer um trabalho sutil e delicado e que nada realiza se não
for aplicado com lentidão. Mas é precisamente por isso que hoje é
mais necessário que nunca, justamente por isso que encanta e
seduz, muito mais numa época de “trabalho”: quero dizer, de
precipitação, de pressa indecente que se aquece e quer “acabar”
tudo bem depressa, mesmo que se trate de um livro, antigo ou
novo. — Essa própria arte não acaba facilmente com o que quer
que seja, ensina a ler bem, isto é, lentamente, com profundidade,
com prudência e precaução, com segundas intenções, portas
abertas, com dedos e olhos delicados... Amigos pacientes, este
livro não deseja para ele senão leitores e filólogos perfeitos:
aprendam a me ler bem!
Ruta, perto de Gênova, outono do ano de 1886.
1
Neste livro encontra-se agindo um ser “subterrâneo” que
cava, perfura e corrói. Ver-se-á, desde que se tenha olhos para tal
trabalho nas profundezas, como avança lentamente, com
circunspecção e com uma suave inflexibilidade, sem que se
perceba em demasia a angústia que acompanha a privação
prolongada de ar e de luz; poder-se-ia até julgá-lo feliz por realizar
esse trabalho obscuro. Não parece que alguma fé o guie, que
alguma consolação o compense? Talvez queira ter para ele uma
longa obscuridade, coisas que lhe sejam próprias, coisas
incompreensíveis, secretas, enigmáticas, porque sabe o que terá
em troca: sua manhã só para ele, sua redenção, sua aurora?...
Certamente voltará: não lhe perguntem o que procura lá em baixo;
ele mesmo o dirá, esse Trofônio, esse ser de aparência
subterrânea, uma vez que de novo se tenha “tornado homem”.
Costuma-se esquecer inteiramente o silêncio quando se esteve
soterrado tanto tempo como ele, só tanto tempo como ele.
2
Com efeito, meus pacientes amigos, vou dizer-lhes o que
procurei lá embaixo, vou dizer-lhes neste prefácio tardio, que
poderia ter-se facilmente tornado um último adeus, uma oração
fúnebre, pois voltei — e re-emergi. Não pensem que pretendo
envolvê-los em semelhante empresa feliz ou mesmo somente em
semelhante solidão! De fato, quem percorre tais caminhos não
encontra ninguém: isso é peculiar aos “caminhos particulares”.
Ninguém vem em seu auxílio; ele próprio deve livrar-se,
completamente só, de todos os perigos, de todos os acasos, de
todas as maldades, de todas as tempestades que sobrevêm. De
fato, tem seu caminho que é próprio dele — e, em acréscimo, a
amargura, por vezes o desdém, que lhe causam esse “próprio
dele”; deve-se enumerar, entre esses elementos de amargura e de
desprezo, a incapacidade, por exemplo, em que se encontram seus
amigos de adivinhar onde ele está ou para onde vai, a ponto de
perguntarem às vezes: “Como? Será que isso é avançar? Será que
ainda tem — um caminho?”
— Foi então que empreendi uma coisa que não podia ser
para todos: desci para as profundezas; passei a perfurar o chão,
comecei a examinar e a minar uma velha confiança sobre a qual,
há alguns milhares de anos, nós, os filósofos, temos o costume de
construir, como sobre o terreno mais firme — e reconstruir
sempre, embora até hoje toda construção tenha ruído: comecei a
minar nossa confiança na moral. Mas será que não me
compreendem?
3
Foi sobre o bem e o mal que até hoje refletimos mais
pobremente: esse foi sempre um tema demasiado perigoso. A
consciência, a boa reputação, o inferno, e às vezes mesmo a
polícia, não permitiam nem permitem imparcialidade; é que,
perante a moral, como perante qualquer autoridade, não é
permitido refletir e, menos ainda, falar: nesse ponto se deve —
obedecer! Desde que o mundo existe, nunca uma autoridade quis
ser tomada por objeto de crítica; e chegar ao ponto de criticar a
moral, a moral enquanto problema, ter a moral por problemática:
como? Isso não foi — isso não é — imoral? — A moral, contudo,
não dispõe somente de toda espécie de meios de intimidação para
manter à distância as investigações e os instrumentos de tortura:
sua segurança se baseia ainda mais numa certa arte de sedução
que possui — ela sabe “entusiasmar”. Ela consegue muitas vezes
com um simples olhar paralisar a vontade crítica e até atraí-la
para seu lado, havendo casos em que a lança mesmo contra si
própria: de modo que, como o escorpião, crava o aguilhão em seu
próprio corpo. De fato, há muito tempo que a moral conhece toda
espécie de loucuras na arte de persuadir: ainda hoje, não há
orador que não se dirija a ela para lhe pedir ajuda (basta, por
exemplo, ouvir nossos anarquistas: como falam moralmente para
convencer! Chegam até a chamar-se a si próprios “os bons e os
justos”). É que a moral, desde sempre, desde que se fala e se
persuade sobre a terra, se afirmou como a maior mestra da
sedução — e no que diz respeito a nós, filósofos, como a
verdadeira Circe dos filósofos. Para que serve isso se, desde Platão,
todos os arquitetos filosóficos da Europa construíram em vão? Se
tudo ameaça ruir ou já se acha perdido nos escombros — tudo o
que eles consideravam leal e seriamente como aere perenius1? Ai!
Como é falsa a resposta que ainda se dá hoje a semelhante
pergunta: “Porque todos eles negligenciaram admitir a hipótese, o
exame dos fundamentos, uma crítica de toda a razão”. — Aí está a
nefasta resposta de Kant2 que realmente não nos jogou a nós,
filósofos, num terreno mais firme e menos enganador! (— e, dito
de passagem, não seria um pouco estranho exigir que um
instrumento se pusesse a criticar sua própria perfeição e sua
própria competência? Que o próprio intelecto “reconhecesse” seu
valor, sua força, seus limites? Não seria até um pouco absurdo? —
). A verdadeira resposta teria sido, ao contrário, que todos os
filósofos construíram seus edifícios sob a sedução da moral,
inclusive Kant — que a intenção deles só aparentemente se dirigia
à certeza, à “verdade”, mas na realidade se dirigia a majestosos
edifícios morais: para nos servirmos ainda uma vez da inocente
linguagem de Kant que considerava como sua tarefa e seu
trabalho, uma tarefa “menos brilhante, mas não sem mérito”,
“aplanar e consolidar o terreno onde seriam construídos esses
majestosos edifícios morais” (Crítica da razão pura, II).
Infelizmente, não conseguiu, bem pelo contrário — é preciso
confessá-lo hoje. Com intenções tão exaltadas, Kant era o digno
filho de seu século que pode ser chamado, mais que qualquer
outro, o século do entusiasmo: como Kant ainda o é, e isso é bom,
com relação ao aspecto mais precioso de seu século (por exemplo,
por esse bom sensualismo que introduziu em sua teoria do
conhecimento). Foi ainda mordido por essa tarântula moral, que
era Rousseau3, e também sentia pesar em sua alma o fanatismo
moral, do qual outro discípulo de Rousseau se sentia e se
proclamava seu executor, refiro-me a Robespierre4 que queria
fundar na terra o império da sabedoria, da justiça e da virtude
(Discurso de 7 de julho de 1794). Por outro lado, com um tal
fanatismo francês no coração, não era possível agir de modo
menos francês, mais profundo, mais sólido, mais alemão — se é
que em nossos dias a palavra “alemão” ainda é permitida nesse
sentido — como o fez Kant: para dar lugar a seu “império moral”,
viu-se obrigado a acrescentar um mundo indemonstrável, um
“para além” lógico — é por isso que teve necessidade de sua crítica
da razão pura! Em outras palavras: ele não teria tido necessidade
dela, se não houvesse uma coisa que lhe importasse mais que
tudo — tornar o “mundo moral” inatacável, melhor ainda,
inatingível para a razão — pois ele sentia com extrema violência a
vulnerabilidade de uma ordem moral perante a razão! Com relação
à natureza e à história, com relação à inata imoralidade da
natureza e da história, Kant, como todo bom alemão, desde a
origem, era um pessimista; acreditava na moral, não porque fosse
demonstrada pela natureza e pela história, mas apesar de ser
incessantemente contradita pela natureza e pela história. Para
compreender este “apesar de”, talvez se poderia recordar qualquer
coisa semelhante em Lutero, esse outro grande pessimista que,
com toda a intrepidez luterana, quis um dia torná-lo sensível a
seus amigos: “Se se pudesse compreender pela razão como o Deus
que mostra tanta cólera e maldade pode ser justo e bom, para que
serviria então a fé?” De fato, desde sempre, nada impressionou
mais profundamente a alma alemã, nada a “tentou” mais que esta
dedução, a mais perigosa de todas, uma dedução que constitui
para todo verdadeiro latino um pecado contra o espírito: credo
quia absurdum est5. Com ele, a lógica alemã entra pela primeira
vez na história do dogma cristão; mas ainda hoje, mil anos depois,
nós, alemães de hoje, alemães tardios sob todos os pontos de vista
— pressentimos algo da verdade, uma possibilidade de verdade,
por trás do célebre princípio fundamental da dialética, pelo qual
Hegel6 ajudou recentemente para a vitória do espírito alemão
sobre a Europa — “a contradição é o motor do mundo, todas as
coisas se contradizem a si próprias” —: porque somos, até em
lógica, pessimistas.
4
Mas os juízos lógicos não são os mais profundos e os mais
fundamentais, para os quais possa descer a coragem de nossa
suspeita: a confiança na razão, que é inseparável da validade
desses juízos, enquanto confiança é um fenômeno moral... Terá
talvez o pessimismo alemão que dar ainda um último passo?
Talvez deverá ainda uma vez confrontar seu credo e seu
absurdum? E se este livro, até na moral, até para além da
confiança na moral, é um livro pessimista — não será
precisamente nisso um livro alemão? De fato, ele representa
efetivamente uma contradição e não teme essa contradição:
denuncia-se aqui a confiança na moral — mas por quê? Por
moralidade! Ou como deveríamos chamar o que se passa neste
livro, o que se passa em nós? — pois, para nosso gosto
preferiríamos expressões mais modestas. Mas não há nenhuma
dúvida, também a nós se dirige um “tu deves”, também nós
obedecemos a uma lei severa acima de nós — e essa é a última
moral que ainda se torna inteligível para nós, a última moral que,
nós também, poderíamos ainda viver, se em alguma coisa somos
ainda homens de consciência, é precisamente nisso: pois, não
queremos voltar ao que consideramos como ultrapassado e
caduco, a alguma coisa que não consideramos como digno de fé,
qualquer que seja o nome que lhe for conferido: Deus, virtude,
justiça, amor ao próximo; não queremos estabelecer uma ponte
mentirosa para um ideal antigo; temos uma aversão profunda
contra tudo o que em nós quisesse reaproximar e se intrometer;
somos os inimigos de toda espécie de fé e de cristianismo atuais;
inimigos das meias medidas de tudo o que é romantismo e de tudo
o que é espírito patrioteiro; inimigos também do refinamento
artístico, da falta de consciência artística que gostaria de nos
persuadir a adorar aquilo em que já não cremos — pois somos
artistas; — inimigos, numa palavra, de todo feminismo europeu
(ou idealismo, se houver preferência para que eu o diga assim) que
eternamente “atrai para as alturas” e que, por isso mesmo,
eternamente “rebaixa”. Ora, como homens possuidores desta
consciência, cremos ainda remontar à retidão e à piedade alemãs
milenares, embora sejamos seus descendentes incertos e últimos,
nós, imoralistas e ateus de hoje, nos consideramos, em certo
sentido, como os herdeiros dessa retidão e dessa piedade, como os
executores de sua vontade interior, de uma vontade pessimista,
como já indiquei, que não teme em se negar a si mesma, porque
nega com alegria! Em nós se cumpre — no caso de desejarem uma
fórmula — a auto-ultrapassagem da moral.
5
— No final das contas, contudo: por que devemos proclamar
em alta voz e com tanto ardor o que somos, o que queremos e o
que não queremos? Consideremos isso mais friamente e mais
sabiamente, de mais longe e de mais alto, vamos dizê-lo como isso
pode ser dito entre nós, com voz tão baixa que o mundo inteiro
não o ouça, que o mundo inteiro não nos ouça! Antes de tudo,
vamos dizê-lo lentamente... Este prefácio chega tarde, mais não
muito tarde; que importam, realmente, cinco ou seis anos? Um tal
livro e um tal problema não têm pressa; e, além disso, somos
amigos do lento, eu bem como meu livro. Não foi em vão que fui
filólogo, e talvez ainda o seja. Filólogo quer dizer professor de
leitura lenta: acaba-se por escrever também lentamente. Agora
isso não só faz parte de meus hábitos, mas até meu gosto se
adaptou a isso — um gosto maldoso talvez? — Não escrever nada
que não deixe desesperada a espécie dos homens “apressados”. De
fato, a filologia é essa arte venerável que exige de seus
admiradores antes de tudo uma coisa: manter-se afastado, tomar
tempo, tornar-se silencioso, tornar-se lento — uma arte de
ourivesaria e um domínio de ourives aplicado à palavra, uma arte
que requer um trabalho sutil e delicado e que nada realiza se não
for aplicado com lentidão. Mas é precisamente por isso que hoje é
mais necessário que nunca, justamente por isso que encanta e
seduz, muito mais numa época de “trabalho”: quero dizer, de
precipitação, de pressa indecente que se aquece e quer “acabar”
tudo bem depressa, mesmo que se trate de um livro, antigo ou
novo. — Essa própria arte não acaba facilmente com o que quer
que seja, ensina a ler bem, isto é, lentamente, com profundidade,
com prudência e precaução, com segundas intenções, portas
abertas, com dedos e olhos delicados... Amigos pacientes, este
livro não deseja para ele senão leitores e filólogos perfeitos:
aprendam a me ler bem!
Ruta, perto de Gênova, outono do ano de 1886.